Os conflitos no Condomínio: um olhar para além do óbvio

Bruno Caldeira

Criados em 2001, os Julgados de Paz (J.P.) têm servido o objectivo de proporcionar uma justiça mais célere e mais próxima, para a qual muito tem contribuído os seus serviços de Mediação.

Grande parte dos casos que dão entrada nos J.P. respeitam a situações de condomínio. Segundo os números apresentados pela Direcção Geral da Administração Extrajudicial na sua NewsletterDGAE (N.º 5, 2005), 48% do número de processos entrados nos doze J.P.’s referem-se a “acções resultantes de direitos e deveres de condóminos sempre que a respectiva assembleia não tenha deliberado sobre a obrigatoriedade de compromisso arbitral para a resolução de litígios entre condóminos ou entre condóminos e o administrador.”

Muitas vezes considerados como conflitos menores e encarados como sendo resolúveis através de uma simples negociação, este tipo de acções são vistas como questões em que o aspecto financeiro (pagar/não pagar) é o preponderante. Os mediadores sentem-se tentados a encarar este conflito objectivo como o problema em si, não sendo claro para eles que muito mais pode estar envolvido nesta situação.

Parece-nos importante, numa tentativa de analisar a importância da mediação para a resolução deste tipo de conflitos, termos em consideração tudo aquilo que, geralmente, significa a casa em que habitamos. A este nível é interessante ler algumas das ideias que surgem na literatura sobre a população sem-abrigo.

Segundo Rossi (1990), a casa está ligada a noções como abrigo, conforto, descanso, dormida, calor, afecto, segurança, família, amor e sociabilidade. Associadas a estas noções surgem as múltiplas funções de uma casa: protecção dos elementos e de roubos; lugar para descanso e recuperação; espaço pessoal e íntimo; lugar próprio onde cada pessoa manifesta o seu gosto próprio e personalidade; lugar familiar e de educação dos filhos; lugar de referência, de trabalho ou de recreação; símbolo de pertença a uma comunidade e de estatuto social; valor económico (Lopez et al., 1995).

A casa proporciona uma segurança ontológica, definida por Giddens como a confiança que os seres humanos têm na continuidade da sua auto-identidade e na constância do seu meio ambiente (Bento e Barreto, 2003), funcionando como um marco de identidade, fonte de reconhecimento e como fazendo parte do próprio individuo, no sentido em que é algo que ele sente como seu.

Esta representa um momento central na constituição do espaço como espaço irredutivelmente humano, opondo, enquanto local habitado, a significação concreta de um aqui humano. Assim, o homem é sujeito frente ao mundo por ser previamente habitante da sua casa (Peón, 1997). No entanto, esta relação interno/externo, e consequentemente, a posição do sujeito frente ao mundo dependerá do reconhecimento público, pois só assim a propriedade poderá dar conta da existência humana (Vezzulla, 2004).

Estando assim descrita a importância da casa, será possível pensarmos a mediação de situações de condomínio sem que verdadeiramente se aborde a questão da representação da mesma? O que significará aquela casa para quem nela habita? De que forma é que este espaço, bem como a sua representação, se relaciona com o espaço social comum (o condomínio)?

Um dos conceitos básicos da Escola Negocial de Harvard afirma a necessidade de se procurarem interesses por trás de posições e, dentro deste, o facto das necessidades humanas básicas serem os interesses mais poderosos (Fisher, Ury e Patton, 2001). Na perspectiva do que foi apresentado anteriormente em termos das funções da casa, facilmente nos apercebemos que algumas destas estão enquadradas nos dois primeiros níveis que Maslow (1954) apresenta no seu modelo teórico, ou seja, necessidades fisiológicas (entre as quais se encontra o abrigo) e necessidades de segurança. Temos claro que, felizmente, na realidade civilizacional em que vivemos, a maior parte das vezes estas necessidades se encontram satisfeitas, permitindo-nos reflectir mais ao nível dos relacionamentos sociais.

O fundamental é que se consiga perceber que neste tipo de situações a pessoa e o seu espaço são elementos de uma mesma identidade, ou seja, se o indivíduo se reconhece num espaço, escolhido por ele e em relação ao qual cria uma série de expectativas, nunca será possível perceber os seus interesses sem que se chegue àquilo que a casa representa, ou, dito de outra forma, sem que nos fale da sua relação com a sua casa.

Por outro lado, não devemos ignorar o facto de um condomínio ser um dinâmico sistema de relações em que, muitas vezes, as pessoas estão envolvidas durante muitos anos. Isto implica a necessidade de perceber como foi correndo este relacionamento e que papéis foram tendo as pessoas naquele espaço.

Nestas situações pode existir uma clara diferença entre a forma como a pessoa se reconhece (reconhece o seu próprio espaço) e a forma como é reconhecido (a forma como se relaciona com o espaço comum). A investigação realizada sobre esta diferença, a possibilidade de cruzar estas duas percepções, poderá ser o ponto de quebra de posições, muitas vezes demasiado rígidas, face ao problema.

Nesta fase de investigação surgem as principais divergências, contradições e adversidades, causadas quer por tentativas de encobrir algo, quer pelas indefinições, sendo por isso essencial que o mediador faça perguntas abertas, dando espaço aos mediados para falar de si e permitindo-lhes um afastamento das posições e do conflito objectivo apresentado (Vezzulla, 2004). Utilizar a técnica do desenho da casa, alargando-o, se necessário, aos espaços comuns, tal como na Mediação Familiar, poderá ser uma técnica que ajuda a ultrapassar impasses que possam surgir na investigação das representações que cada uma das partes têm desses espaços.

Por último, consideramos ser necessário perceber muito bem o modo como o representante do condomínio percebe o seu papel, de que forma é que este lhe foi atribuído e se se sente reconhecido neste papel pelos outros condóminos. A dualidade que existe nestas situações, condómino e administrador, pode, eventualmente, causar um mal-estar que poderá ser expresso através de uma grande conflitualidade face aos outros.

Esta reflexão pretende apenas lançar algumas ideias sobre as questões do condomínio, partindo da importância da casa como elemento identitário, levando-nos a pensá-la não como um objecto mas como uma condição de possibilidade do mundo.

É importante que se perceba que a pessoa, enquanto morador e proprietário da sua casa, estabelece uma nova relação com o não-eu exterior, possibilitando a apropriação do mundo, a sua transformação e o seu conhecimento (Peón, 1997). Na nossa perspectiva, só conhecendo a realidade desta nova relação será possível chegar a uma resposta que atenda às reais necessidades dos mediados nestes processos.

Estaremos assim mais habilitados para compreender o impacto de uma ruptura de um cano, de problemas de vizinhança, de obras que não correm bem, enfim, de todo um leque de situações em que os conflitos surgem, por vezes de forma claramente desproporcionada. Não é o objecto que está em causa, mas sim a relação que temos com ele. Este é o ponto de partida que propomos.

Bibliografia:

– Bento, António e Barreto, Elias (2002) – Sem-amor Sem-abrigo. Climepsi Editores, Lisboa.

– Fisher, Ury & Patton (2001). Como Conduzir uma Negociação? (5.ª Edição). Edições ASA, Porto.

– Lopez, M. ; Valverde, C. e Rodriguez, J. (1995). Personas sin Hogar en Madrid. Informe Psicosocial y Epidemiologico. Ministerio de Asuntos Sociales, Dirección General de Acción Social.

– Maslow, A.(1954). Motivation Personality (2nd. Edition). New York: Harper and Row Publications.

– Ministério da justiça – Direcção Geral da Administração Extrajudicial (2005). 2004 em Números. NewsletterDGAE N.º 5 (pp. 25 e 26).

– Peón, J. A. S. (2001). Pensar la vida cotidiana: Actas III Encuentros Internacionales de Filosofia en el Camino de Santiago, 1997. Universidade de Santiago de Compostela, Consorcio de Santiago.

– Rossi, P. H. (1990). The old homeless and the new homeless in historical perspective. American Psychologist, vol. 45.

– Vezzulla, J. C. (2004). Mediação: Teoria e Prática e Guia para utilizadores e profissionais. Ministério da Justiça – Direcção Geral da Administração Extrajudicial.

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